Vamos combinar: a vida não é muito fácil. Nunca foi. A gente
tende a achar que os tempos passados eram melhores, temos uma quedinha pelo
saudosismo, mas é só porque não podemos retornar lá atrás. Nós só escolheríamos,
realmente, voltar aos momentos de prazer. E, acredite, nós apenas nos lembramos
tão bem deles, porque eram poucos. Por isso eles se destacam na nossa memória
como um pontinho vermelho na salada... No mais, a vida era cheia de
aborrecimentos, tédio, desconforto e obrigações. Sem falar nos dramas e
sofrimentos.
Entre as vivências passadas e as atuais, a maior diferença,
mesmo, é que, agora, podemos escolher. Claro que a nossa capacidade de escolha não
seja absoluta. Se fosse, talvez
escolhêssemos a inércia, tão segura e neutra. Mas poder pensar, raciocinar,
aprender, sentir, sonhar, nos traz a oportunidade de influenciar nossas ações,
nossa atitude e nossos desejos.
Mamãe contava que quando eu era bebê, dormia, dormia e não
acordava nem para mamar. Ela tinha que me descobrir para eu sentir frio e, só
assim, acordar para me alimentar. Quem me conhece (eu “incluída dentro”) acha
difícil acreditar que eu pudesse perder uma refeição. Mas o que pode explicar
eu ainda não ser passível de uma cirurgia bariátrica? Porque, por vezes, eu
escolho a moderação. Poderia escolher mais vezes, enfim: eu posso escolher.
Vou contar um outro caso, que, hoje, me enche de vergonha, mas
ilustra bem como a nossa cultura naturaliza comportamentos e faz com que julguemos
normais algumas escolhas que deveríamos considerar aberrações. Eu tinha uma
colega de classe chamada Leila. Ela era negra. Naquela época, a gente entrava
nos ônibus pela porta de trás e a roleta ficava quase no meio do ônibus. Era
muito comum, então, passageiro aproveitar do aperto (é, a Bhtrans não inventou
os ônibus lotados, só aperfeiçoou o incômodo e hipertrofiou o lucro) e descer
pela porta de trás sem pagar a passagem. Nesse dia específico, eu estava sentada
do lado da Leila e a gente conversava. De repente, uma turma de jovens que
estava perto da porta de trás, escapuliu sem pagar a passagem. Eram negros. Eu
olhei pra Leila e falei, naturalmente: “Pela cor... tinha que ser, né?”. Quando
eu percebi, acredito que tenha ficado roxa de vergonha. Mas fingi que era
pastos verdejantes nas colinas ao pôr-do-sol. Ela fez de conta que não ouviu,
também. Mas o pior, pior, pior é que eu me justificava, intimamente: “A Leila é
tão, mas tão legal, que eu esqueci que ela era preta”!
Oh! Como explicar que eu, uma pessoa boa, que não fazia mal
a ninguém e que até tinha amigas negras poderia ser racista? E quando eu ria
das piadas que comparavam negros com animais, era só bem humorada? E que tinha
um cabelo todo enrolado e que minha mãe cortava ele bem curtinho, enquanto fazia
as mais lindas tranças na minha irmã, que tinha cabelo liso? E que quando vestia
alguma roupa rubra, brincava: sou igual preto: adoro um vermelhão? Normal, né?
A questão é toda essa: Não é normal. É comum.
Normal é o respeito. Normal é ser crítica o bastante para
avaliar que o preconceito e a discriminação são inaceitáveis. Em qualquer
circunstância. Normal é prestar atenção no que acontece ao redor, e no nosso
íntimo, para escolher lutar contra o racismo. Lutar contra a homofobia. Lutar
contra o machismo. Contra as desigualdades sociais. O especismo. O sofrimento.
Quando eu disse, lá no começo, que a vida não é muito fácil,
é verdade. Tenho visto, lido e assistido sobre tanto sofrimento causado pelo
preconceito. Morte de ambulantes cujo crime é ser pobre. Morte de homossexuais cujo
crime é ser quem são. Mortes de mulheres cujo crime é não aceitarem ser
propriedade de seus maridos, namorados, religiões e pais. Recordes de mortes de
jovens negros no país da “democracia racial”, morte de bilhões de animais para
satisfação do paladar...
A vida nunca foi fácil. Mas agora, eu posso escolher.
A escolha me impede de perpetuar injustiças e, me enxergar
como parte da engrenagem que está moendo vidas, me impulsiona a tomar atitudes e
não aceitar a inércia criminosa.
Escolho defender os direitos de quem quer amar seu maior
semelhante, alguém do mesmo sexo; escolho dar as mãos às mulheres que lutam por
condições igualitárias; escolho falar pelos animais que apenas fazem gritar nos
matadouros. Escolho esquadrinhar meu íntimo e sufocar o racismo que bebi e que me
é servido, diariamente.