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terça-feira, 23 de setembro de 2014

Escolha





Vamos combinar: a vida não é muito fácil. Nunca foi. A gente tende a achar que os tempos passados eram melhores, temos uma quedinha pelo saudosismo, mas é só porque não podemos retornar lá atrás. Nós só escolheríamos, realmente, voltar aos momentos de prazer. E, acredite, nós apenas nos lembramos tão bem deles, porque eram poucos. Por isso eles se destacam na nossa memória como um pontinho vermelho na salada... No mais, a vida era cheia de aborrecimentos, tédio, desconforto e obrigações. Sem falar nos dramas e sofrimentos.
Entre as vivências passadas e as atuais, a maior diferença, mesmo, é que, agora, podemos escolher. Claro que a nossa capacidade de escolha não seja absoluta.  Se fosse, talvez escolhêssemos a inércia, tão segura e neutra. Mas poder pensar, raciocinar, aprender, sentir, sonhar, nos traz a oportunidade de influenciar nossas ações, nossa atitude e nossos desejos.
Mamãe contava que quando eu era bebê, dormia, dormia e não acordava nem para mamar. Ela tinha que me descobrir para eu sentir frio e, só assim, acordar para me alimentar. Quem me conhece (eu “incluída dentro”) acha difícil acreditar que eu pudesse perder uma refeição. Mas o que pode explicar eu ainda não ser passível de uma cirurgia bariátrica? Porque, por vezes, eu escolho a moderação. Poderia escolher mais vezes, enfim: eu posso escolher.
Vou contar um outro caso, que, hoje, me enche de vergonha, mas ilustra bem como a nossa cultura naturaliza comportamentos e faz com que julguemos normais algumas escolhas que deveríamos considerar aberrações. Eu tinha uma colega de classe chamada Leila. Ela era negra. Naquela época, a gente entrava nos ônibus pela porta de trás e a roleta ficava quase no meio do ônibus. Era muito comum, então, passageiro aproveitar do aperto (é, a Bhtrans não inventou os ônibus lotados, só aperfeiçoou o incômodo e hipertrofiou o lucro) e descer pela porta de trás sem pagar a passagem. Nesse dia específico, eu estava sentada do lado da Leila e a gente conversava. De repente, uma turma de jovens que estava perto da porta de trás, escapuliu sem pagar a passagem. Eram negros. Eu olhei pra Leila e falei, naturalmente: “Pela cor... tinha que ser, né?”. Quando eu percebi, acredito que tenha ficado roxa de vergonha. Mas fingi que era pastos verdejantes nas colinas ao pôr-do-sol. Ela fez de conta que não ouviu, também. Mas o pior, pior, pior é que eu me justificava, intimamente: “A Leila é tão, mas tão legal, que eu esqueci que ela era preta”!
Oh! Como explicar que eu, uma pessoa boa, que não fazia mal a ninguém e que até tinha amigas negras poderia ser racista? E quando eu ria das piadas que comparavam negros com animais, era só bem humorada? E que tinha um cabelo todo enrolado e que minha mãe cortava ele bem curtinho, enquanto fazia as mais lindas tranças na minha irmã, que tinha cabelo liso? E que quando vestia alguma roupa rubra, brincava: sou igual preto: adoro um vermelhão? Normal, né?
A questão é toda essa: Não é normal. É comum.
Normal é o respeito. Normal é ser crítica o bastante para avaliar que o preconceito e a discriminação são inaceitáveis. Em qualquer circunstância. Normal é prestar atenção no que acontece ao redor, e no nosso íntimo, para escolher lutar contra o racismo. Lutar contra a homofobia. Lutar contra o machismo. Contra as desigualdades sociais. O especismo. O sofrimento.
Quando eu disse, lá no começo, que a vida não é muito fácil, é verdade. Tenho visto, lido e assistido sobre tanto sofrimento causado pelo preconceito. Morte de ambulantes cujo crime é ser pobre. Morte de homossexuais cujo crime é ser quem são. Mortes de mulheres cujo crime é não aceitarem ser propriedade de seus maridos, namorados, religiões e pais. Recordes de mortes de jovens negros no país da “democracia racial”, morte de bilhões de animais para satisfação do paladar...
A vida nunca foi fácil. Mas agora, eu posso escolher.
A escolha me impede de perpetuar injustiças e, me enxergar como parte da engrenagem que está moendo vidas, me impulsiona a tomar atitudes e não aceitar a inércia criminosa.
Escolho defender os direitos de quem quer amar seu maior semelhante, alguém do mesmo sexo; escolho dar as mãos às mulheres que lutam por condições igualitárias; escolho falar pelos animais que apenas fazem gritar nos matadouros. Escolho esquadrinhar meu íntimo e sufocar o racismo que bebi e que me é servido, diariamente.

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